Henrique Sousa (da Nazaré)
Henrique Sousa continua, destemidamente, a enfrentar os anos. Em dezembro, completará - Deus o permita!- um século.
Numa tarde de setembro, encontrei-o, em direção à sua adega, na Manhenha, arrimado em duas “canadianas”.
“Não sei porque é que os joelhos me doem e por que é que me canso!... Não faço nada!...” desabafa o homem mais velho da freguesia da Piedade do Pico.
Quem o vê não lhe atribui a soma de anos que ele carrega, sem desânimo. Ouve bem, usa óculos só para ler, e já não vai pescar porque os pesqueiros da Ponta da Ilha são perigosos e não se apanha a quantidade de peixe de antigamente.
Há cinco anos, numa manhã de Agosto, Henrique da Nazaré, como é conhecido por aqui, pescava na ponta do cais, enquanto no interior do porto António Guterres retemperava forças para enfrentar o grave problema dos refugiados. Hoje, passa as tardes no Salão da Liga de Amigos da Manhenha, recordando, com os mais antigos, estórias de outros tempos em que ele arriava à baleia no bote do Monteiro, ou andava nos meses de verão por esses mares fora, numa traineira, pescando albacora. Tempos de desafogo económico que muitas famílias viveram.
“A pesca das gatas também deixou muito dinheiro. Hoje as pessoas vivem melhor, mas há mais doenças. Há mais pesticidas. Antigamente a gente adubada as terras com o estrume dos porcos.”
Mestre Henrique, como eu o trato, fala com propriedade e esmera-se na linguagem. Quando comete algum erro gramatical, de imediato o corrige, o que revela os seus conhecimentos, pese embora não ter nascido e crescido em lençóis dourados. Por aqui, são raros os idosos que revelam estas qualidades.
“Tenho pena de não ter tirado o exame da quarta-classe. Tinha-me servido para a vida, para tirar a carta de mestre. Paciência! Era um dos melhores alunos. O Professor Manuel Coelho pediu-me para acompanhar o filho na escola. Ele emprestava-me os livros para eu estudar e eu decorava as lições de Geografia, de História, de Português. Quando o filho foi ao Faial fazer exame, ele queria que eu o acompanhasse, mas eu não fui. Depois arrependi-me.”
Sentado frente à adega onde passa o verão com a filha Henriqueta, com o Farol da Ponta da Ilha em fundo, e as ondas mansas enrolando-se nas pedras da baía, Henrique recorda episódios de uma longa vida, com a humildade de um homem bom, sem intuito de o considerarem herói. A simpatia transparece na voz meiga e simpática com que responde às perguntas do interlocutor.
“Passei o Atlântico até ao Brasil nove vezes e fui uma ao Canadá” visitar a família.
Na década de cinquenta e de sessenta, muitos rapazes da Piedade emigraram para o Brasil, para fugir à guerra colonial, como outros o haviam feito, no século passado para fugir à fome e à miséria.
“Naquele tempo não havia dinheiro. Comecei por ganhar uns escudinhos na abertura da estrada Lajes-Piedade ( 1939/1943) e depois na estrada entre o Mistério da Prainha e a Piedade. Parece-me que não houve nada que se fizesses mais importante para a nossa freguesia.”
Um carro pára em frente e uma senhora simpática, com sotaque brasileiro, interpela:” Oi avô, conversando, n'é?” “Sim!” – responde o meu interlocutor, carinhosamente, à neta. “Então, vai jantar lá acima?...”Mestre Henrique não deu grande atenção ao convite, talvez porque o sol ainda ia alto e a conversa era interessante.
“Vês aquela adega no fim do Caminho de Cima? Ainda me lembro dela ser feita... estes campos, aqui estavam todos cheios de vinhas...”
De repente, pára, talvez para recordar todas as canseiras que ele próprio passou por esses currais semeados de pedra, onde as videiras medram e a uva amadurece, exalando um aroma inigualável.
“Hoje ninguém quer trabalhar esses campos e a vinha vai-se perder”. A afirmação, vulgarmente usada pelos mais velhos, não tem, na boca de Henrique, um tom condenatório. Antes parece um desabafo, um queixume face a tanto que os mais antigos fizeram e agora é ocupado por uma vegetação desordenada, sem interesse económico.
O quase centenário cidadão da Piedade, tem um ar bondoso e acolhedor, dialogante e compreensivo, no que é correspondido, afavelmente, pelos seus concidadãos.
Nas pequenas localidades rurais, talvez por influência da cultura judaico-cristã, é tida uma atenção especial, ou veneração aos idosos e doentes.
A experiência de vida, a simplicidade e amabilidade de Henrique Sousa devem merecer o reconhecimento da comunidade onde vive, pois quem despreza os idosos, cedo ou tarde será também desconsiderado.
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